Uma das grandes contribuições do pensamento feminista contemporâneo foi pensar o feminismo a partir da noção de gênero. Veja por quê.
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Contracultura
Como pensamento, ou seja, como uma massa viva que articula ideias pulsantes e não cristais rígidos – o feminismo, nos seus primórdios, nasce colocando a mulher em debate e se desenvolve, na década de 1960, em torno das questões identitárias que ganhavam espaço naquele momento com o movimento pelos direitos civis dos negros e o movimento homossexual.
Gênero e interseccionalidade
A noção de gênero tem uma característica mais relacional, o que significa que ela se articula com outras noções culturais, como classe e etnia. É nesse aspecto relacional que o feminismo debate a interseccionalidade (categoria teórica que focaliza múltiplos sistemas de opressão a um mesmo sujeito, articulando raça, gênero e classe) e põe ênfase, sobretudo, no feminismo negro. Essa tonalidade se mostra crucial para a ética feminista, que se contrapõe à divisão de classes entendendo que ela promove uma série de outras divisões, como a de gênero e a étnica.
É nesse sentido que a ética feminista não é orientada exclusivamente para mulheres, como alguns podem supor. Trata-se de um projeto muito mais ambicioso, por ser politicamente transformador. A luta do feminismo é uma luta multidimensional, para usar a expressão da filósofa Nancy Fraser, porque se coloca ao mesmo tempo contra a exploração econômica, a hierarquia de classes, o racismo e o preconceito de gênero.
Como diz a historiadora Joan Scott, para entender a desigualdade de poder e a injustiça social é preciso considerar como estes três eixos estão organizados: classe, raça e gênero.
Natureza x cultura
O uso da noção de gênero vai além da primeira onda feminista e da própria noção de “mulheres”, porque esta está integrada naquela. O avanço da noção de gênero se situa na sua fluidez e no seu dinamismo, isto é, ela não condensa os sexos em feminino e masculino e nem os aprisiona na dicotomia mulheres x homens. É por isso que Scott defende a imperiosa necessidade de se rejeitar “o caráter fixo e permanente da oposição binária”. Afinal, quem está vivo muda – “tudo muda o tempo todo” – e quem não muda já morreu (literal e simbolicamente).
O que está implicado na noção de gênero é o aspecto das relações que produzem e reproduzem as identidades de gênero – as quais são variáveis em si e entre si. O gênero traz à luz as relações de poder, como elas se articulam e como podemos significá-las.
Uma das formas de dar significado às relações de gênero é entendendo como o gênero constrói as relações sociais. Logo, as categorias “homem” e “mulher” são em si mesmas vazias, porque socialmente o que irrompe são as relações sociais que se sustentam ideologicamente da naturalização dessas categorias.
Mulher x mulheres
O gênero, portanto, só existe como fato social; não existe um gênero natural explicado pela biologia.
Monique Wittig também sinaliza nesse sentido de que “homem” e “mulher” são categorias políticas, e não dados naturais. É importante a diferenciação proposta pela teórica francesa entre “mulher” e “mulheres” a partir da célebre reflexão de Simone de Beauvoir “ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”. Wittig destaca o aspecto mítico de “mulher” criticado por Beauvoir:
“Nossa primeira tarefa, ao que parece, é desassociar completamente ‘mulheres’ (a classe dentro da qual lutamos) de ‘mulher’, o mito. Pois ‘mulher’ não existe para nós, é apenas uma formação imaginária, enquanto ‘mulheres’ são o produto de uma relação social. ‘Mulher’ existe para nos confundir, para ocultar a realidade de ‘mulheres’. Para nos conscientizarmos que somos uma classe e para nos tornarmos uma classe, primeiro temos que matar o mito ‘mulher’, inclusive seus aspectos mais sedutores”.
Ainda sobre a diferença entre “mulher” e “mulheres”, uma outra teórica feminista, Teresa de Lauretis, fala da importância de não apenas articular as diferenças entre as mulheres, mas, sobretudo, nas mulheres.
As mulheres negras, latinas, indígenas, asiáticas puseram-se criticamente contra o chamado feminismo branco da segunda onda, que colocava no mesmo balaio as mulheres, ignorando a pluralidade que as atravessa (raça, etnia, orientação sexual) e os efeitos da opressão de gênero. Retomando o filósofo francês Michel Foucault, o gênero não é uma propriedade que existe a priori, mas é um conjunto de efeitos produzidos nos corpos através das relações sociais.
A violência do patriarcado
Talvez um dos aspectos mais bonitos que a categoria de gênero veio trazer para o pensamento feminista – e para o pensamento contemporâneo – seja a noção de impermanência. Nada está dado, nada é estático; a todo tempo estamos nos reconfigurando. E quem está vivo sente e anseia por mudança.
O patriarcalismo, que agoniza, quer que o estado das coisas permaneça em águas paradas. Cristalizado, sufocado, bolorento, mofado, não consegue deixar o ar penetrar pelas janelas da casa senhorial. O movimento feminista se move, flui, escoa e, também, mete o pé na porta dessa casa em ruínas.
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